terça-feira, 2 de junho de 2015

Jamor

Na bancada de imprensa tinha de me conter. Ali o adepto não existe, há um muro invisível resistente, fartei-me de dar murros nesse muro. De quando em quando lá me distraía, se este de quando em quando serve para dizer alguma coisa é que não era de vez em quando mas apenas nas alturas em que não há mesmo outro remédio. Já usar o rosto é mais fácil, sofrido ou alegre, ansioso ou eufórico, uma boa máscara consegue sempre esconder tudo - não fosse na distracção o meu corpo sportinguista começar a agir por conta própria. Disciplina férrea, é o que é. Os jogadores no campo que fizessem o seu trabalho que eu sofria o meu. Pago em acreditações e sem outro remédio que não acreditar. Já usar os olhos é muito mais fácil. Quando o árbitro tão lesto a expulsar Cédric tinha mesmo de ter expulso Baiano, os adeptos viravam-se para a nossa bancada e diziam bem alto de viva voz: «escrevam, escrevam a verdade, denunciem esta roubalheira»*. Foi a primeira vez que o meu corpo agiu por conta própria, com um movimento de pescoço a mover o crânio de cima abaixo, qual assentimento. Sim, sim. Ao intervalo, nem foi preciso, olhos nos olhos bastavam-me para dizer sou tão ou mais sportinguista que vocês. De resto, era o que era, o jogo que era, o Braga ia ganhar, não era? Quem acreditava? Acreditava o Marco Silva, acreditavam os jogadores, não sei se acreditava um benfiquista que tirava fotos lá em baixo e me dizia ao telemóvel «fica descansado  que vais a prolongamento». Vou, vou, respondia eu. Não, não acreditava, se acreditava mais era que o Braga nos abafava de vez, meu pessimismo aliás não é de acreditar em reviravoltas, no meu clube então é onde mais se acentua, trauma daqueles dezoito anos a ter de dizer é para o ano. Como não havia de compreender os adeptos em debandada enquanto as más línguas das rádios falavam no Carrillo "nulidade", no William Carvalho "a gasóleo", no Adrien "sem chama"... Até que entra Mané e mexe com o jogo, depois entra Fredy Montero e mexe ainda mais, sim, o jogo começava a mexer. Mané a defesa direito? Siga, Slimani insiste, insiste. Até que a seis minutos do fim, a hemorragia começou a estancar, o argelino marcou, muitos adeptos paravam à entrada da maratona, outros recuaram. Depois, com tanto anti-jogo bracarense, seis minutos de desconto, que além de naturais, nem seriam necessários... É que ao minuto 90+3 acontece um daqueles momentos míticos, únicos, impossíveis de esquecer a quem ame aquele emblema e aquelas cores: Montero, após magistral passe longo de Paulo Oliveira, usa da frieza clínica e marca. Marca e o Jamor vem literalmente abaixo, mais adeptos a regressar, adeptos regressados a subirem outra vez para as bancadas. Um sobe as escadas, passa por mim, batemos as mãos num cumprimento tão forte como marcador de um momento: tínhamos conseguido. Alcançado o mais difícil dos cumes, o Braga não arranjaria forças para (lá) chegar onde nós estávamos. Esse lugar onde já conseguíamos vislumbrar a glória. Essa glória que é o derradeiro passo do nosso lema. Reaprender a ganhar tem a ver com isso. Com estes momentos. Com estas conquistas. Num jogo inteiro derrotados desde os 15 minutos com menos um jogador, a perder 2-0 desde os 25 com criativos como Carrillo em sub-rendimento, com William e Adrien a jogarem tão pouco num meio campo com um a menos  - e a falta que teria feito João Mário...
Marco Silva explicara no balneário ao intervalo porque é que ninguém saía dali para o campo se não acreditasse na reviravolta. A mesma reviravolta já alcançada na Alemanha e literalmente roubada à beira do fim pelas conveniências de um patrocinador russo. Não, não é uma questão de sermos o segundo clube do mundo com mais títulos em todas as modalidades, ou de sermos o primeiro com mais títulos olímpicos. Não, a questão é mesmo o presidente não mandar o treinador embora. 

* - a propósito Luciano Amaral toca e bem no nervo. Sem mais comentários.  É da maneira que ainda dá mais gozo