quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014



A Argentina como o Chile representam no extremo sul do planeta a “Última Thule”. Borges (para o efeito não importa que esteja parcial ou inteiramente cego) trabalha ansioso com o terceiro olho, aquele que perfura qualquer distância. Não contempla apenas a ribeira no outro lado, mas também a terra mais distante. Fixará a vista interior em ilhas tão afastadas como a Islândia, a Última Thule do Setentrião romano. Pretende esgotar meridianos e paralelos. Empreende a travessia indagatória para as vizinhas do Árctico não por um puro exagero de auto-desterrado que se projecta no outro extremo, mas porque no globo terráqueo, que é redondo, todos os pontos fazem parte da cultura universal. A sereia que o chama e provoca é a palavra escrita, os textos cardiais, o entranhável, processo das línguas. Cruza os mares para averiguar a formação de idiomas. Dá crédito à notícia que os vikings (“uma multidão de cães que saíram da caverna de uma leoa barbara") chegaram às costas americanas séculos antes de Colombo. Mas anda também atrás das vagas de soldados da fortaleza romana e das tribos germânicas que demoliam limites e derrotavam legiões, traziam nas mãos a espada e na boca o poder de um rico verbo comunicativo. E foi por isso que ocupavam a Islândia, a Inglaterra, a Irlanda, a Alemanha e a Escandinávia.
O homem nascido na fronteira sul não será um marginal. Sente a atracção do centro e das margens opostas, das histórias de guerreiros que inspiram escritas e engedram poetas com ou sem nome. Faz isso com a consciência de que são herdeiras e várias literaturas europeias modernas. Apaixona-se pela evolução dos alfabetos e a odisseia das escrituras. Sente curiosidade pelos textos subjacentes na superfície dos palimpsestos. Não desconhece que se tratam de pergaminhos cuja escrita original foi apagada para estampar por cima outras diferentes mensagens. Tal fenómeno supressivo, essa operação de substituição e sobreposição dá-se também no caso das religiões triunfantes, que constroem as suas igrejas na base dos templos do vencido. Borges é um caso curioso de um estranho e apaixonado poliglota, amante da gramática histórica, do fluir das filologias, do nascimento obscuro, gradual, acumulativo e correctivo nos lábios dos povos das línguas do hemisfério norte e por que não também no seu próprio. Vidente ou cego embebe-se nos poemas mais antigos, na gesta de Beowulf, nas Eddas da Noruega, Gronelândia e Islândia. Deseja penetrar na trajectória de géneros literários com ressonâncias vindas de além mar, que continuam a transformar-se pela voz das gentes. Seduzem-no as Sagas, espécie de epopeias em prosa, nascidas no século X, recitadas no calor do vinho e dos banquetes por um rapsodo que geralmente celebra façanhas de homens de carne e osso. Na sua opinião, as Sagas revelam “um carácter dramático e prefiguram a técnica do cinematógrafo”. Não tem dificuldade em aceitar que se inspiram na realidade e se reportam a factos verídicos. Não se incomoda que a sua forma seja a de uma crónica vinculada ao acontecimento objectivo e nem sequer se importa desconhecer o nome dos seus autores, mas talvez tivessem sido homens que recolheram esses factos esquecidos no anonimato das aldeias. E de algum modo correspondem ao impulso genético que nasce das próprias raízes e estão na origem do folclore, dos cantos populares que brotam como as flores do campo em todos os continentes, sem excluir sequer os povos latino-americanos.
Observa que a partir de certo momento (indica o ano mil) os 'thulir' ou recitadores sem nome são substituídos pelos escaldos, poetas que se identificam por um apelido e assinalam o aparecimento do escritor assim individualizado, mais ou menos profissional, que surge pela necessidade da sociedade, para a qual a poesia narra a história e denota uma tomada de consciência da sua identidade. Borges não hesitará em servir-se das literaturas estrangeiras de qualquer época e território para semear e adubar o seu próprio território, mas não será um súbdito incondicional. Adere ao princípio da autonomia criadora, tornando sua a opinião de Goethe de que “o Canto dos Nibelungos é clássico, mas não deve ser tomado como modelo, nem tão-pouco os chineses, os sérvios ou Calderón”. 

Os Dois Borges - Vida, Sonhos, Enigmas, Volodia Teitelboim, Trad. Serafim Ferreira, Campo das Letras, 2001