domingo, 14 de abril de 2013

O Caderno

Arrancou a folha do caderno grosso de argolas. Era um caderno antigo, tinha-lhe chagado à mão como tudo o que aparece: do nada, como se se insinuasse. O caderno estava escrito há muito, dado como terminado, fechado, quase selado, com uns poucos espaços aqui e ali: dois quartos de página, um terço de página, uma páginas e uma página em branco. Gostava daquele caderno, fora caro, era de desenho, mas tinha gostado naquela capa preta dura e das folhas de papel grosso a darem força e conforto à caneta. 
 Não se devem ter dado mal, tanto que finito e escrito ainda não tinha sido fechado numa gaveta, perdido ou sequer mandado fora. Conta ter sido caderno amigo, companheiro, bastava olhá-lo e logo vinham-lhe à memória sensações de familiaridade e vizinhança de mochilas, viagens, relações e três apartamentos em seis anos. 
Arrancou uma folha sem o perceber, era a página por escrever com um quarto de página livre do outro lado, espaços em branco como intervalos de azul entre céus carregados. Achava ali uma oportunidade de sobrepor um novo tempo ao tempo. Só a letra se mantinha o que era: execrável. Eram as nuvens escuras, mil vezes o computador, tem ao menos forma legível, e de apagar, e de se voltar atrás. 
Tinha pois a folha separada em seu poder, puxou-a a si sobre o caderno para a posição correcta para começar. Caderno sob a sua mão esquerda sustentada pelo joelho, mão direita ao ataque, cómoda como ele, deitado na cama sobre a almofada, e o candeeiro à direita a dar luz ao acontecimento, qual terno ombro amigo.
Escreveu - pois escreveu - letra pequenina, austeridade da folha para o que queria debitar, escrevia era três vezes mais pequeno do que cinco anos antes. Só a letra, tenebrosa, mantinha um certo padrão estético e temporal além da tinta preta. Do mal o menos, folha em branco é que não, era ver as letras umas atrás das outras, activas caldeiras vulcânicas, explodidas pelos dedos, seguidas como cardumes, tempestade jurassica de estrelas cadentes...
Virada a página, continuou na mesma cadência, na outra página, a branca, de um terço fez com que a letra pequena atascasse ainda mais na falta de espaço, fugindo pelos limites, qual trepadeira, fazendo do horizontal, vertical. Foi quando ele reparou que a folha encaixava nas argolas como se nunca fora arrancada. Possível, mas curioso. Já sem espaço na folha, ia experimentar um teste de aderência, assim como se fazem aos pneus de competição. O teste consistia em retirar a folha do caderno e voltar a colocá-la outra vez na mesma posição. Mecânico e às tentativas. Uma, duas, três, quatro, cinco vezes, nada. Não só não conseguiu, como reparou que para voltar a conseguir, só no paciente exercício de introduzir a folha para lá da barreira das argolas, o que implicava passar para o outro lado a parte rasgada pelo arrancar das argolas. Seria fácil numa folha fina, naquela, pelo contrário, esbarrava contra a argola. Muita paciência era precisa quando entrava uma parcela da folha no outro lado e logo saía outra neste exercício inútil onde o todo o tempo se desperdiçava. Tentou dezenas de vezes, para ter a prova, para perceber como o fizera antes sem pensar e ou a mínima ideia do que estaria a fazer. 

A resposta, tinha à frente do nariz, óbvia como o encaixe da folha no caderno. Era a escrita, o comprometimento com o texto, na possível consumação, naquele preciso momento, de um novo passo iniciático. Fora ele mesmo que o escrevera.