sábado, 6 de abril de 2013

Dalton Trevisan




Via Tempo Contado e Antologia do Esquecimento fiquei com o escritor fisgado. Coincidiu com a atribuição do Prémio Camões 2012. Pouco depois, não me recordo em que morada , li de uma promoção de livros de Dalton Trevisan no meu bairro, na "minha" livraria, a Livraria Ler a quem sempre dou prioridade. O preço era de ir a correr: 1 euro. Lá constantei que não era um, mas dois euros e meio. Mas não por um livro de contos mas dois: o "Crimes de Paixão"(1978) e o "Ah, é?"(1994). Quis a sorte que um amigo me oferecesse pouco depois o "Cemitério de Elefantes"(1964), outra pechincha: três euros e meio... Juro que é um dos melhores livros de contos que se pode ler em vida. Exemplos:

Bento mastigava a raiva no prato de feijão. Envelhece, ambos intransigentes no seu rancor, o ancião lépido aos setenta anos e José, bigode grisalho, na flor dos quarenta. Tão  diversas, são todas iguais nos olhos que enchem a cara miudinha - o olho aflito do adulto. (pag.35) 

A fumaça branca na sua boquinha pintada trazia até ali quente aconchego da cama. Os cães gemiam e arrastavam a corrente, nem a voz da dona os aquietava. (pag.  46) 

Mil promessas no diário: Não fumar mais que três cigarros por dia. Copia pensamento na revista: O amor é sonho nebuloso. (p.79) 


No cartaz a fotografia colorida de Elza, quase nua: Estrela do bailado afro-brasileiro! Ao batuque do tambor entre as piadinhas cruéis da canalha, saracoteava pobre imitação de hula-hula. (p.87)

No silêncio o bzzz dos pernilongos assinala o posto de cada um, assombrados com o mistério da noite, o farol piscando no alto do morro.(…) O vencedor descasca o ingá, chupa de olho guloso a fava adocicada. Jamais correu sangue no cemitério, a faquinha na cinta é para descamar peixe. E, aos brigões, incapazes de se moverem, basta xingarem-se à distância. (p.93)





Por vezes cómica, outras vezes melancólica, frequentemente nostálgica, esta prosa tem o mérito supremo de respeitar a vida na sua essência temperamental. O mais estranho é que Dalton Trevisan tem a capacidade de nos desenfastiar da realidade mostrando-nos a realidade. (...)
Compreendemos que a rua é a casa do contista, os episódios desenrolam-se a partir da relação entre os elementos que a compõem revelando, por vezes em meros pormenores na acção dos personagens, que noutras circunstâncias dissipar-se-iam e passariam despercebidos, a matéria com que se cozinha a humanidade.

Dalton Trevisan não dá entrevistas nem se deixa fotografar desde 1972. É um desconhecido conhecido, anónimo à sua maneira. Quem o ler seguindo quem verdadeiramente sabe não terá dificuldade em compreender o porquê de tanto esconderijo. Basta dar com a riqueza das histórias, dos personagens, das situações que tão bem retratam o viver no seu  tanto de estranho, inusitado, aleatório, caótico. Sabemos que a realidade supera a ficção, e Dalton Trevisan parece ser o dono da chave, a esponja que tudo capta. Mas com uma condição: a de ninguém o ver, respeito, ele está a trabalhar, e é um feiticeiro, não quebremos o feitiço. E é um caçador, não pode ser visto pelas presas em seu habitat, lugares onde ele sabe encontrar os espaços com os olhos fechados.... Para os amigos, conhecidos e mesmo desconhecidos, o Dalton anda ou andará por aí, achá-lo é que é complicado mas também não é assim tão difícil... Sempre irá às suas duas livrarias habituais, ao Mercado (de Curitíba), transitando um pouco por todo o lado da cidade e arredores. Vegetariano plena em forma aos 87 anos de idade, Trévisan é homem lido e tido em literatura mas não só, esponja que é lê os jornais todos, é cinéfilo inveterado. Depois no escrever é absoluto perfeccionista, buscando a palavra certeira como o único dos tiros possíveis, no que é preciso inovar, ser pioneiro, procurando a síntese total, potenciando a palavra ao máximo reduzindo as palavras ao mínimo, e nem uma vírgula a mais. Nunca está perfeito. Nunca. A náusea é tanta que toda a obra é constantemente reeditada enquanto se vão construindo novos edifícios, novas estruturas, contam-se histórias de edições antigas que comprou ao leitor sortudo e desprevenindo oferendo a (boa) nova. Claro que o contemplado não pode imaginar o que o contempla. 


* - Recomendo vivamente também os posts do Âncoras e Nefelibatas à volta do escritor e da sua Curitíba, bem como o artigo de Alexandra Lucas Coelho. Ou este documentário adoçante.