sexta-feira, 29 de março de 2013

Os Botequins


Noite fria e, como todas as noites, o botequim deserto.
José sentava-se à mesa do fundo, o gordo vinha com a garrafa. Enquanto ele ficava no botequim (e ficava até a hora de fechar), o gordo deixa a garrafa aberta no balcão. José trazia o jornal dobrado no bolso. O cálice fazia um círculo úmido na mesa.
Antes de beber, lia uma notícia inteira. Erguendo o cálice e fechando os olhos, engolia dum trago. Ao abri-los, via no teto a sombra redonda da lâmpada. O gordo contornava o balcão, enchia o cálice até a borda,derramada uma gota. José esperava o dia em que, atrás do jornal, iria lamber a gota perdida.
Na quarta ou quinta dose bebia em mais de um gole. Estendia as pernas sob a mesa, contemplava a sombra do teto, lia o jornal. Não olhava para o gordo de calva brilhosa, galhinho de arruda na orelha. Se demorava em servir, José batia o cálice na mesa.
O botequim era corredor escuro, três ou quatro mesas encostadas à parede e o balcão no meio, atrás do qual o gordo curvava a cabeça sob as garrafas. No balcão um vidro de pepinos com mancha de bolor no vinagre.
E nenhum espelho na parede. José não gostava de se olhar. Descobriu aquele botequim e vinha, toda noite, sentar-se à sua mesa, o jornal no bolso. Sempre o mesmo, puído nas dobras. Lia notícia completa antes de emborcar a primeira dose.
Raros intrusos que se aventuravam no botequim davam as costas a José. Quem gosta de ficar, no botequim vazio, de cara com um desconhecido? A sua mesa junto ao reservado. Cada vez que alguém entrava, José sentia o odor ácido do amoníaco. E chapéu, o rosto na sombra, bebendo seus tragos. Hora de fechar, o gordo tirava da barriga o avental sujo e, sem olhar para o cliente, contava o dinheiro da gaveta.
José avançava preguiçoso por entre as mesas. Tinha casa e família, preferia o botequim, desenhando na mesa os círculos úmidos. Botequim frio, escuro e pestilento. Com ninguém falava, sequer o patrão. Ali não se sentia só. No balcão a garrafa aberta. Mulher alguma diria: Não beba mais, por favor...Pelas cinco chagas de Nosso Senhor, seja esse o último cálice! Não tinha vergonha de beber no botequim. O gordo era pessoa que compreendia as coisas. Além do mais, não havia espelho.
O gordo compreendia. Quando José não tinha dinheiro, deixava o jornal no bolso, depois do quinto cálice ainda o bebia dum trago. Fim de noite, empurrava a cadeira e saía, sem que o patrão corresse atrás. Noite seguinte, voltava; o relógio no bolsinho do colete, a aliança na mão balofa do gordo haviam sido a sua aliança e o seu relógio. Por amor da família – se é que tinha família - sujeitava-se a encher o cálice do único freguês.
No balcão, ao lado do vidro de pepinos, um prato com ovos cozidos, a casca escura de pó. O gordo ali debruçado, raminho fresco de arruda na orelha. Medo da solidão, conservava o botequim aberto, na esperança de que alguém entrasse? O último bar funcionando no domingo sem a fumaça dos cigarros, sem o burburinho das vozes, sem o bafo azul dos bebedores.
Naquela noite um desconhecido surgiu no botequim deserto, além do gordo e de José na mesa do fundo. Em vez de dar-lhe as costas, sentou-se à mesa mais próxima. O patrão serviu-o e retirou-se. O outro saudou José e, lívido, careta de medo, misturou o pó rosado no copo.
José observou a sombra redonda no teto, as duas manchas de goteira, o vizinho que, depois de beber, deixava a cabeça cair na mesa e o braço pender até o chão – lentamente o copo veio rolando a seus pés.
O gordo, sem tirar o avental, recolhia o dinheiro da gaveta. José afastou-se devagar e, a cada passo, sentia a meia encharcada. Por mais cansado, podia andar a noite inteira na chuva. Não era hora de ir para casa. Teria de achar outro botequim e começar outra vez.



     Dalton Trevisan, Cemitério de Elefantes, Relógio D'Água, Ed.n.8 (Março de 1984)