sexta-feira, 8 de junho de 2012

Salut, John Fante


"A cozinha. La cucina. A pátria de uma verdadeira mãe, a cave quente da bruxa boa, bem no fundo das terras ermas da solidão com potes de suaves porções a borbulhar ao lume. Uma caverna de ervas mágicas, rosmadinho, tomilho, salva e oregãos, que devolvem o juízo aos lunáticos, paz aos atormentados, alegria aos desgraçados. Todo um mundo numa divisão: por altar a banca da cozinha, por círculo mágico a toalha do xadrez onde comem as crianças, as crianças já velhas, de volta agora ao princípio de tudo, com o sabor do leite da mãe ainda presente nas suas recordações, com o aroma das narinas e os olhos a brilhar. Um mundo perverso recua lá fora enquanto a velha bruxa recolhe a ninhadas do alcance dos lobos. "

"Depois aconteceu. Numa noite em que a chuva batia no telhado da cozinha, um grande espírito entrou para sempre na minha vida. Tinha o livro nas mãos e tremia enquanto ele me falava do Homem e do mundo, do amor e da sabedoria, da dor e da culpa e eu soube, naquela altura, que nunca mais seria o mesmo. O espírito chamava-se Fyodor Mikhaylovich Dostoyevsky. Ele percebia mais de pais e filhos do que qualquer outra pessoa do mundo, e de irmãos e irmãs, padres e vagabundos, culpa e inocência. O Dostoyesky mudou-me. O Idiota, Os Possessos, Os Irmãos Karamazov, O Jogador. Virou-me do avesso. Descobri que podia respirar e ver horizontes até então invisíveis. O ódio que eu sentia pelo meu pai derreteu. Eu amava o meu pai, aquele pobre, sofredor, um destroço assombrado. E amava a minha mãe também. E todo o resto da família."

John Fante, "A Confraria do Vinho", (1977), Tradução de Luís Ruivo , Teorema, Junho 2007