Começa
com a aproximação de barco à ilha, ouve-se em conversa o realizador Gonçalo
Tocha e o assistente Dídio Pestana, do som. São eles os dois que irão fazer um
documentário sobre a ilha do Côrvo, não imaginam ao que vão e enumeram em voz-off os singulares dados estatísticos daquele lugar limite: 400
habitantes, habitada na ponta sul numa única vila, uma cratera (a
caldeira), uma estrada, uma aerogare, um posto de bombeiros, uma
escola, um restaurante, dois cafés, uma câmara municipal, um porto...Imaginamos o que sentem quando dizem ao que vão: "vamos
filmar tudo o que conseguirmos". Nesse ponto já vemos o porto a a aproximar-se e um pouco acima a pequena Vila do Corvo. Filmaram-se 180 horas, da montagem ficaram três.
Uma
das primeiras pessoas a aparecer é a senhora Inês Inês, que ainda sabe fazer o gorro típico do
baleeiro local, o Gorro do Corvino. O tecer do gorro com o nome próprio do realizador estampado vai-nos acompanhar durante
o documentário, efeito da montagem, enquanto vamos vendo tudo o que há para mostrar naquelas três horas: os campos verdes e pastagens íngremes que acabam em declives a pique sobre o mar; a Caldeira, de cortar a respiração. O som directo ilustra toda aquela natureza em ebulição: o vento, a fúria daquele mar de meio do oceano face a uma ilha de
17 Km de comprimento e 12,5 Km de largura. Outro sinal de natureza quase em estado selvagem são diferentes sons de distintos pássaros , alguns de espécies tão raras que trazem histórias no bico.
Há todo um passado que une esta comunidade tão pequena como sólida, solidária e unida. Está-lhe nos genes. Está nas típicas fechaduras de madeira que não
trancam totalmente. Todos se conhecem. Óscar Nunes, ex-cabo
do mar, fala da ilha como poucos, tinha um diário, um arquivo
infindável que desapareceu não se sabe porquê. O Corvo não tem quase registos da sua história, a
tradição oral é que marca e dá identidade à ilha. Sobretudo em lendas antigas como a do Cavaleiro da
Ilha ou da Nossa Senhora do Rosário que
protegia os corvinos da ira dos invasores desviando todos
os tiros mandados pelos piratas e devolvendo-os multiplicados. Apesar disso, e como parece óbvio, as novas tecnologias trouxeram ao Corvo um brutal choque de
realidade. O mundo subitamente acercou-se de um lugar onde a
electricidade só surge em 1963 e o telefone durante os anos 70. Em que no Inverno havia meses em que ninguém entrava na ilha por causa do estado do mar. Hoje tudo se mistura, avionetas que chegam e partem, vitelos que nascem, porcos que se matam. E histórias. As antigas, à volta da caça às baleias. As de vida como a de um homem que queria apenas
conhecer a ilha e que ficou lá de vez, deixando mulher e filha; ou do solitário que quer ir para Angola porque a Europa
já não dá nada, e porque um homem sem mulher naquela ilha dá em
maluco. Também as eleições ali são outra coisa, dividam-se 400 habitantes por listas, partidos e apoiantes e compreende-se porque tudo pára no Corvo eleitoral. Do mais, por um voto se resolve uma eleição.
Para se filmar com um mínimo de fidelidade numa comunidade assim, só mesmo ganhando a confiança das gentes. Interagir, deixar as pessoas à vontade, deixar a experiência acontecer. Três
horas de documentário acabam por tornar-se irrelevantes. Podiam
ser duas, podiam ser seis. Não o sentimos. Estamos em terrenos nunca tentados e onde muito dificilmente se voltará a ir. Saímos do filme com vontade de conhecer o Corvo. Tornou-se nos familiar. O que é o maior e grande feito deste documentário.