domingo, 14 de agosto de 2011

Literatura


A literatura é, e deve ser, um veneno ministrado sabiamente; uma arte de prestidigitador, capaz de, com elegância ou com violência, levantar um sujeito acima do chão, ou tirar-lhe, como quem tira um tapete, o chão debaixo dos seus pés; e a literatura não tem obrigação alguma de conservar o sujeito no ar, em qualquer dos casos: a intencionalidade da literatura consiste mesmo em suspender a acção mágica e em deixá-lo cair, perplexo e perdido, de quanto mais alto melhor.
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Só por si, o hábito da leitura não significa um conhecimento ou reconhecimento da literatura como tal. Mas, ainda que esse reconhecimento se processe em muitos leitores, daí não resulta que eles sintam necessidade de se situar, correlacionar, comparar, historiar o que estimam, que os fira o apetite de comunicarem a outros as observações que fizeram, ou que a literatura ocupe, em suas vidas, um lugar preponderante, absorvente, que seja ela o que dá sentido e estrutura a essas vidas. 
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A literatura não pode ser ensinada. Ensinar seja o que for é apresentar um instrumental adequado e explicar a maneira de uma pessoa tirar proveito dele.
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Há que amar a literatura. Sabemos bem que o amor pode ser fugaz, intermitente, inconstante, frágil, imenso, ocasional, calculado, uma paixão subita, uma paciente conquista. Amando-a, porém, é impossível não querer conhecê-la em toda a parte e em todos os tempos, em extensão e em profundidade, é impossível não querer estudá-la, para transmitir e comunicar aos outros a fascinação que ela exerce sobre nós; é impossível não querer vivê-la, gratuitamente e como agente,que ela é, de tudo o que constantemente se pretende que ela seja e de tudo o que ela constantemente ultrapassa em si mesma e em nós.



Jorge de Sena in O Reino da Estupidez-I